Lugares de sabedorias

Lugares de sabedorias

As cidades da Região dos Lagos possuem territórios extensos e com paisagens ancestrais, naturais e culturais em áreas de restinga, praias, enseadas, costões, lagoas e salinas para além dos lugares, espaços e cantos da pesca tradicional. Estes lugares foram sucessivamente ocupados, modificados e transformados por sociedades e culturas distintas ao longo dos séculos. Lugares que se transformaram, principalmente após a segunda metade do século XX, em espaços urbanos descontextualizados e desenraizados a partir da especulação imobiliária e devido ao processo intenso de “turistificação” do modelo dominante de sol e praia. Soma-se a este cenário o advento recente das áreas de prospecção de petróleo do pré-sal. Essas mudanças colocam em crise valores, crenças, identidades, autoestimas e saberes-fazeres, na medida em que os conhecimentos tradicionais, transmitidos oralmente pela observação e pela experiência, tornam-se invisíveis, descartáveis e obsoletos diante da racionalidade e da eficácia de um “mundo novo” globalizado, desterritorializado, desenraizado e desencantado, pautado pela regulação econômica do capital. 

Aos poucos, os lugares de sabedorias vêm sendo reconfigurados no turbilhão dos fluxos de pessoas, ideias, informações, conhecimentos tecnológicos, mercadorias, objetos e coisas, sucessivamente incidindo na mudança e na transformação das estruturas sociais e nas práticas culturais. Inclusive diante da construção dos imaginários, das subjetividades e dos apegos aos lugares, com seus sentidos de enraizamentos, de pertencimentos e de vínculos afetivos. Para os pescadores tradicionais e mestres sabedores da cultura popular este habitar na modernidade tardia, da contemporaneidade, redunda na obsolescência, invisibilidade e descarte cotidianos de suas identidades culturais e dos seus conhecimentos, tecnologias, habilidades, maestrias, ofícios e artes. 

O desenraizamento social (Weil, 2001) e as humilhações sociais (Gonçalves Filho, 1998) se fazem presentes nas cidades da Região dos Lagos, e, não só em Arraial do Cabo, através das sucessivas perdas dos espaços, territórios, lugares, pedaços e cantos de praias da pesca tradicional. Como implica, também, em ruptura cotidiana na capacidade de transmitir – através das experiências, observações, vivências, memórias e narrativas orais – os seus saberes-fazeres, conhecimentos e sabedorias tradicionais para novos aprendizes. Inclusive nos espaços de ensino, educação, cultura e pesquisa formais. Estes podem influenciar e contribuir, coabitar e coexistir enquanto outro saber portador de uma compreensão mais cotidiana, prosaica e comezinha sobre os ciclos da natureza, todavia encarnados com o envolvimento sustentável frente à natureza profunda e às paisagens culturais ancestrais com seus limites, marcos, imaginários e subjetividades em comunidades de destinos

É necessário fazer a reflexão singular e distinta para além dos “lugares de memórias” Pierre Nora (1993) ou “espaços de memórias” Éclea Bosi (2003), ao explicitar que as memórias individuais e coletivas dos grupos sociais encontram-se enraizadas nos lugares de sabedorias associadas à pesca tradicional e ao “circuito” dos mestres sabedores da cultura popular desde os tempos ancestrais, pretéritos e contemporâneos. Os lugares de sabedorias podem suscitar propostas de crescimento local com envolvimento sustentável além de práticas pedagógicas, inclusivas e de autonomia, ao objetivar a salvaguardar o patrimônio cultural e natural e os bens culturais materiais e imateriais nos territórios tradicionais da pesca relacionados, cotidianamente, aos saberes-fazeres, sabedorias, conhecimentos e a epistemologia da totalidade. 

Em suma, nos lugares de sabedorias, eles ainda continuam pescando, reformando e construindo embarcações, redes e petrechos de pesca; fazendo folias, aconselhando e rezando com as ervas medicinais e contando os causos, as memórias, as reminiscências, entre outras. Ao ressignificar a cultura popular, a prática, e, notadamente, as ciências dos saberes tradicionais, frente às situações de ruptura existencial, individuais e coletivas, eles resistem sabendo-se “sabedores” e que podem coabitar e coexistir neste mundo contemporâneo ao contribuir com seus conhecimentos, sabedorias e saberes-fazeres tradicionais e com suas tecnologias artesanais de manejo nos ambientes das restingas e das áreas costeiras e marinhas.

Por Paulo Sérgio Barreto (Sociólogo)¹

¹O presente texto decorre da tese do doutorado na área de Psicologia Social e do Trabalho/IPUSP, defendida em abril de 2021, com o título A pesca artesanal de canoas de boçarda de Arraial do Cabo (RJ). Sobre as referências bibliográficas, vê: BOSI, Ecléa (2013). O tempo vivo da memória – Ensaio de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial e (1987). Lembranças de velhos (Memória e Sociedade). São Paulo: T.A. Queiroz/Editora da USP; GONÇALVES FILHO, José Moura (1998). Humilhação social – um problema político em psicologia. Psicol. USP [online]. vol.9, n.2, p.11-67. Disponível em:  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002; NORA, Pierre (1993). Entre Memória e História. A problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados e do Departamento de História da PUC-SP, no. 10, (Dezembro) e WEIL, Simone (2001). O enraizamento. Bauru – SP: EDUSC.

 

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