"Brasil precisa aprender a partilhar conhecimentos sobre preservação"

 

“O Brasil precisa mudar”. A advertência foi feita pela professora da Universidade Católica Portuguesa Eduarda Vieira, autoridade em conservação preventiva em Portugal, diante de uma constatação: especialistas brasileiros em patrimônio não compartilham informações sobre soluções inovadoras encontradas para lidar com a questão da preservação. “Ainda há uma atitude cultural um bocadinho retrógrada aqui no que toca a partilha de conhecimento”, disse Eduarda em entrevista ao portal da Casa de Oswaldo Cruz (COC). Para ela, o receio de perder protagonismo ou espaço no mercado trava a troca de conhecimento no País, o que acaba retardando projetos de preservação.

 

No Rio para ministrar, na pós-graduação da COC, um workshop  sobre conservação preventiva – conjunto de ações multidisciplinares para evitar e minimizar a deterioração e a perda de valor dos bens culturais -. ela não deixou de falar, em tom engajado, sobre o momento dramático pelo qual seu país passa, especialmente na área da cultura. A crise econômica que Portugal atravessa e a política de austeridade imposta pela União Europeia estão colocando a preservação do patrimônio lusitano em risco, alerta Eduarda. “O Estado está a demitir-se de conservar o patrimônio. Quando é o Estado que está a demitir-se, o patrimônio só se vai salvar por iniciativa dos cidadãos”, declarou.

 

O campo da conservação preventiva se desenvolveu recentemente e segue em evolução. No contexto português, como a senhora conceitua conservação preventiva?

A conservação preventiva já existe há algumas décadas como conceito na realidade portuguesa, mas tem vindo de fato a registrar uma grande evolução (recentemente). Portugal tentou fazer um esforço de adaptação às normativas internacionais e ao que se estava a fazer nos vários países da Europa. Passamos as fases de evolução que outros países passaram, com exceção da Inglaterra, que é um país que tem uma tradição de conservação preventiva mais antiga, com uma prática de 40, 50 anos. Para nós, a conservação preventiva avançou muito, sobretudo nos últimos 15 a 18 anos, e continua em evolução, tanto é que já está contemplada na própria legislação a partir de 2004, em que todos os museus passaram a ter obrigatoriamente que fazer o seu plano de conservação preventiva. Isso foi um marco na conservação preventiva no contexto português.

 

A senhora diz que a conservação preventiva até pouco tempo não era bem compreendida por profissionais ligados à área do patrimônio. Isso mudou?

Mudou, embora ainda tenhamos uma herança um pouco complicada. A compreensão da conservação preventiva depende da geração (…). Neste momento, a conservação preventiva permanece muito focada na instituição museu, arquivo ou biblioteca. As novas gerações de arquitetos, de museólogos, de conservadores e restauradores já olham a conservação preventiva de outra forma, já compreendem melhor que é necessário fazer uma avaliação de risco, uma gestão de risco. Eles começam a compreender que é preciso ter uma visão integrada do patrimônio – do acervo com o edifício. Mas o terreno não está completamente ganho. Portanto, é um trabalho que prossegue.

 

O campo da conservação preventiva está em diferentes estágios de desenvolvimento no Brasil e em Portugal. Quais são as principais diferenças entre os dois lados do Atlântico?

O Brasil pode e deve estar em mudança. O principal problema que vejo aqui é o da partilha do conhecimento e de problemas. Ainda há no Brasil muita dificuldade em compreender (algo): que eu tenho um problema na minha instituição, no meu museu, e preciso de chamar um colega que pode ter a solução ou que me pode ajudar a encontrar uma solução. Ainda há muito o receio de partilhar, porque ‘me vai tirar um nicho de mercado ou um nicho de protagonismo’. Esse é o principal problema que vejo no Brasil e que tem que mudar a breve prazo. O Brasil é um continente, portanto tem muito campo de trabalho. Não há motivo para que isso continue a ocorrer.

Esse é o principal aspecto…

Negativo.

 

… em que o Brasil tem a aprender com Portugal?

Sim. Neste momento, conseguimos aprender o que é trabalhar em rede e quais são as vantagens disso, sobretudo porque vivemos em uma época de globalização. Não é só no espaço do próprio país que vamos ter necessidade de partilhar o conhecimento, mas também com outros países. Não faz sentido que um brasileiro tenha projeção internacional com os seus trabalhos e depois não seja conhecido no seu próprio país e não partilhe esses êxitos ou os fracassos. (…) Ainda há uma atitude cultural um bocadinho retrógrada aqui no que toca a partilha de conhecimento. Muitas vezes, isso é motivado por uma (percepção): ‘Eu tenho uma coisa que não está bem na minha instituição e tenho vergonha de mostrar, logo não vou partilhar, e também não vou chamar quem pode ajudar. Vou (…) demorar muito mais tempo para chegar a uma solução’.

 

A senhora identificou alguma experiência interessante no Brasil no campo do patrimônio?

Vocês têm uma abordagem ao patrimônio de uma forma mais direta que nós. O patrimônio é menos sacralizado. Nós, europeus, temos uma visão de uma certa sacralização do patrimônio, o que nos faz muitas vezes ser um bocadinho mais distantes (…) Nesse aspecto, com a vossa maneira de ser, sinto que há uma abordagem mais direta. E sinto que, se calhar, há experiências interessantes em curso, que não são efetivamente partilhadas. Uma coisa que me acontece quando venho ao Brasil é fazer ponte entre os profissionais brasileiros. As pessoas não se conhecem: um vive em Minas, outro no Recife, outro no Rio Grande do Sul…

 

E se conectam através da senhora…

Eu conheço as várias pessoas e está-me a acontecer frequentemente ligá-las. É porque alguma coisa não está a funcionar e isso não deve continuar.

 

Embora uma lei de 2004 exija que os museus em Portugal tenham um plano de conservação preventiva, ainda hoje muitos não o têm. Quais são as condições necessárias para isso sair do papel?

Uma coisa é a legislação obrigar, outra é chegarmos à prática. O que nós tínhamos que melhorar é a formação dos recursos humanos. Já muito se fez. A nossa direção geral de patrimônio cultural tem feito um bom trabalho, mas muito direcionado para a rede nacional de museus. Temos várias centenas de outros pequenos museus que ou não sabem que existe (exigência de plano), ou que não sabem fazer. Ou o diretor não se interessa o suficiente. A conservação preventiva é um trabalho de equipe, e não de uma pessoa. Muitas das gerações mais jovens já têm interesse em fazer esse trabalho, mas não têm o poder para o fazer, ou não têm a formação. O poder de decisão está na direção. Essa missão tem que ser assumida quer de cima para baixo, quer de baixo para cima, portanto, integralmente na vertical e na horizontal.

 

A crise que Portugal atravessa põe a conservação do patrimônio em risco?

Põe. Portugal passa neste momento por um período de crise econômica muito severa, que faz com que haja uma redução drástica do orçamento dos museus. Aí os profissionais estão a ver a conservação preventiva não como uma obrigatoriedade e algo que deveria ser encarado como natural, mas como a opção possível, a solução para a crise econômica. Isso não é correto e não é bom, mas é fruto da crise. Claro que há risco, não só a nível de conservação preventiva. Há risco de conservação do próprio patrimônio. Se falarmos de conservação arquitetônica, está tudo em causa. O Estado como detentor da coisa pública está a demitir-se de conservar o patrimônio. Quando é o Estado que está a demitir-se, o patrimônio só se vai salvar por iniciativa dos cidadãos. Está tudo em aberto. Não sei onde esta crise nos vai levar. Porque cultura não é uma prioridade, quando há desemprego ou uma situação social muito grave, tremenda – as pessoas estão a viver com muita dificuldade. Não estamos como a Espanha; estamos mais como a Grécia. Veja o que aconteceu no caso grego, em que imensos sítios arqueológicos e imensos museus pura e simplesmente colapsaram. Espero que isso não venha a acontecer no meu país.

 

Então o momento é de incerteza?

O momento é de incerteza. Estamos a tentar responder dentro daquilo que podemos, mas não sabemos o que a gestão pública por parte do Estado nos reserva. Vem um dia e sai no jornal que vai se vender o edifício X, vai se vender o edifício Y. Há proprietários particulares que tem obras que estão tombadas nas suas coleções, e o Estado faz pareceres favoráveis para elas poderem ser vendidas. Tivemos há pouco tempo um escândalo. São os acadêmicos que estão a denunciar isso. Portanto, a nossa situação em termos de conservação do patrimônio é muito delicada porque temos neste momento situações extremas. Há um programa governamental para redução de despesas do Estado. A cultura sempre foi o filho esquecido. Agora sequer temos ministro da Cultura. Temos uma secretaria de Estado, que é um membro mais fraco do governo, logo tem um orçamento mais pequeno. Em cima desta situação, estão a reduzir ainda mais. Neste momento, há reações da academia ou reações dos próprios cidadãos. É claro que o cidadão comum está preocupado com o seu emprego, se vai ter o que comer, se vai ter a sua casa. Nós estamos com problemas seríssimos, portanto obviamente o patrimônio fica para segundo plano. Mas nós, acadêmicos, estamos preocupados com isso e estamos na linha de frente.

 

É possível resistir?

É todos os dias tanto problema, mais um imposto para pagar, mais austeridade, que as pessoas acabam por ficar anestesiadas e chega-se a um ponto em que quase que desanimam. É uma domesticação pela austeridade. Há pessoas que não desistem. (…) Estamos a fazer verdadeiros milagres com poucos recursos. Mas também não desistimos. Não vai mudar a mentalidade que se construiu ao longo do tempo, não vai mudar a abordagem. Somos muito combativos. Temos uma vantagem: temos a Internet e nos pomos em contato muito rapidamente uns com os outros. No ano passado houve muitas manifestações da área da cultura e dos intelectuais de todas as áreas. (…) Temos que ser persistentes. Isto é uma militância hoje, e na área da cultura muito mais.