Sem rumo, cidades recorrem a tombamento para garantir preservação

Em entrevista ao site da Semana, a arquiteta, urbanista e historiadora Margareth Pereira, da UFRJ, diz que o tombamento acaba sendo usado em larga escala para salvar bens que poderiam ser protegidos por ferramentas de urbanismo

Margareth ao microfone.
Para Margareth Pereira, o desafio é a integração: “Precisamos construir pontes entre os serviços de preservação do patrimônio e o urbanismo”.

Na contramão de metrópoles como Roma, Paris, Berlim e Nova York, as grandes cidades brasileiras têm recorrido em grande escala ao tombamento para regular questões que poderiam ser geridas por instrumentos de urbanismo. O fenômeno é chamado de patrimonialização. Na falta de uma educação patrimonial plena, serviços de urbanismo eficazes e autoridades conscientes de seu papel, tombam-se bens de valor histórico, cultural ou artístico no País como forma de preservá-los. Quem explica o processo é a arquiteta, urbanista e historiadora Margareth Pereira.

“No Brasil, nem consideramos que a cidade é um patrimônio”, analisa ela em entrevista ao site da Semana Fluminense do Patrimônio. Atualmente, Margareth coordena o Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Crítica da expansão desenfreada das nossas capitais rumo a novas fronteiras – como o caso da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro -, Margareth defende que sejam priorizados investimentos que aumentem a ocupação de áreas já consolidadas e com acesso a sistemas de transporte como metrô e trem. “Precisamos adensar a cidade e racionalizar os investimentos”, diz a urbanista.

Esta edição da semana trouxe o tema Patrimônio cultural: valores em risco. Quais são os principais riscos ao patrimônio hoje?

Há riscos de duas naturezas. A primeira vem do momento de grandes transformações urbanas que a cidade está sofrendo, de uma série de acúmulos de iniciativas relativas ao crescimento urbano, que, às vezes, por falta de planejamento ou de uma visão integrada, coloca em risco nossos bens culturais. Essa série de riscos também inclui as mudanças ambientais e climáticas. Uma segunda natureza de riscos advém dos poucos debates que temos tido na academia – e de modo mais alargado (na sociedade) – sobre o que é esse fenômenos de patrimonialização que temos vivido. Precisamos pensar sobre o movimento de cristalização da nossa memória coletiva em objetos, sob pena de, ao não fazê-lo, não sermos capazes de sensibilizar as nossas autoridades para a salvaguarda desses bens.  Talvez o risco do patrimônio seja culpa nossa – academia, gestores de patrimônio, nós, que estamos organizando uma Semana Fluminense do Patrimônio. Temos de apurar mais os nossos instrumentos de reflexão, ação e alerta.

Nossas metrópoles estão atentas à questão do planejamento urbano?

Lutamos há 20 anos no nosso programa de pós-graduação para que essa seja uma ideia compartilhada pela sociedade. Podemos planejar cidades melhores hoje; não é para amanhã. Há uma articulação delicada entre urbanismo e preservação. Quanto mais os serviços de planejamento foram eficientes e se consolidaram, mais se gerou a preservação dos sítios históricos e das paisagens culturais.  Digo isso porque Roma, Paris, Berlim e Nova York não são tombadas. Madri e Lisboa também não o são inteiramente. São cidades em que não existem leis que congelem o processo de crescimento. Isso porque pouco a pouco a legislação relativa ao planejamento, ao crescimento e ao direcionamento do capital foi sendo modulado pelos serviços de urbanismo através de uma série de instrumentos. Poderíamos dizer que temos outra série de riscos (ao patrimônio) e é aí que entram diversos atores. Às vezes falta às próprias câmaras de cada município uma maior cultura urbanística e patrimonial. Estamos vivendo um momento de construção de guetos, de ambientes fechados de informação.

Como é possível acabar com esse isolamento?

Um dos desafios é construirmos pontes. Precisamos debater com todos os atores envolvidos. O que está acontecendo com frequência no caso do Brasil – não só do Rio – é que os serviços de preservação do patrimônio são chamados para resolver problemas que deveriam ser regulados na esfera das medidas urbanísticas. Quem vai dar a última palavra sobre uma ação urbanística muitas vezes vem para apagar o incêndio. Autoridades federais, estaduais e municipais são chamadas para resolver questões que são de falta de rumo para onde a cidade cresce. Isso não deve ser decisão de um prefeito ou de um grupo de empresários; tem de ser uma discussão pública consistente.

Há algum exemplo recente dessa inversão de papeis no Rio?

São inúmeros. O caso da Aldeia Maracanã (é um deles). Muitas vezes nós acabamos tombando churrascarias, que foi o caso da Plataforma. A Marina da Glória (é outro caso), mas é possível fazer uma lista.

O instrumento do tombamento está sendo usado de forma excessiva?

Sim. Mas, enquanto não tivermos uma educação patrimonial plena, serviços de urbanismo reconhecidos, câmaras e prefeitos conscientes do seu papel e da alta responsabilidade pública que possuem, vou ser hesitante (ao apontar o uso excessivo do tombamento). O tombamento é um instrumento que nasceu como uma excepcionalidade, justamente porque os serviços de urbanismo vieram completá-las e ampará-las. Mas nós estamos num movimento contrário. Na medida em que desenvolvimento urbano, transporte, uso do solo e uma série de questões não são regulados, a cidade tem um recuo e uma perda de potência cultural e política de décadas a cada ano que se posterga a tomada de decisões. O Rio, desde o fim do século 19, vem sofrendo com muitas indecisões em relação a sua forma de crescimento. Neste momento em que estamos, de ressignificação desse espaço de vida coletiva que é a cidade, podemos errar, como já erramos algumas vezes no passado.

Além de aumentar o diálogo, que outros desafios é preciso enfrentar na questão do patrimônio?

Nosso grande desafio é pensar na variedade de situações (relativas ao patrimônio). Que ação um serviço de patrimônio deve ter em uma cidade como Petrópolis? Que ação as autoridades tem de ter numa cidade como Friburgo, que foi violentamente atingida, por conta de mutações climáticas? Que atenção nós devemos ter em uma grande metrópole como o Rio de Janeiro, onde as forças de inovação e de transformação precisam se coadunar com as de preservação. Veja o que deixamos acontecer em 30 anos com Angra dos Reis, que tem um patrimônio do período colonial maravilhosos. O que fizemos com Cabo Frio? Será que estamos prestando atenção em São Pedro da Aldeia?

Falta consciência na sociedade sobre a importância da preservação do patrimônio?

Falta e não falta. Na história das cidades, temos momentos de grande ressignificação dos pactos da vida coletiva. Estamos vivendo um momento de mudança de ordem sociológica e antropológica nos últimos 30 anos. O papel de certas instituições reguladoras – aquelas que ajudam na construção coletiva – não podem ser falhos. A história da cidade passa por momentos de regulação e de reconstrução do pacto coletivo. A prefeitura, a universidade, as instituições públicas e as não governamentais são uma instâncias reguladoras da vida coletiva. Estamos nesse momento de incerteza, mas sou uma pessoa que tem crença, até porque estudo a história das cidades, que é uma história da conquista do respeito e da liberdade coletiva. Nesse ponto, eu acho que a gente chega lá.

O projeto Porto Maravilha está mudando a cara de uma parte importante da cidade: o centro. Qual a sua opinião sobre a iniciativa?

Se eu tiver de apostar em uma direção, apostaria no centro do Rio. Precisamos atrair investimentos para lá, potencializar o uso do centro. Essa área tem de voltar a ser um lugar de habitação. O centro é uma verdadeira joia. Ali há camadas e camadas de história. As autoridades públicas têm tido um comportamento no mínimo desinteligente em relação ao centro do Rio. Temos insistido em expandir a cidade para a zona oeste, em detrimento de zonas que já haviam recebido investimentos públicos há décadas, como o centro e a zona norte suburbana. Discutir a desfuncionalização do porto do Rio e repactuar um projeto de investimento nessa grande área é urgente. A forma como vemos esses projetos veiculados na imprensa e a pouca transparência em relação ao que vai ser feito em cada área são outro pedaço da discussão. As discussões estão sendo levadas de maneira binária ou dual. Estamos falhando na capacidade de ajuizamento. Temos que decompor as discussões. Não posso dizer que o projeto (Porto Maravilha) é um fracasso. Há iniciativas que são oportunas e outras às quais vamos ter de dizer não, que não vão funcionar assim…

Quais são essas iniciativas?

É oportuno trazer habitação para o centro e melhorar a mobilidade naquela região. É importante trazer atividades econômicas para lá, não só moradia. Se coloca-se a moradia, tem que colocar o comércio, equipamentos culturais…. Mas muitas vezes não se tem uma visão setorial: constroem-se prédios só para a camada de baixa renda, por exemplo.  Já vimos na história do urbanismo que isso não dá certo. Temos que misturar tudo. Como vamos misturar classes sociais morando no centro? Há zonas preciosas no centro, mas há áreas que mereceriam mudanças. A discussão não pode ser “sou a favor ou sou contra”. Fui contra que as olimpíadas fossem instaladas na Barra da Tijuca.

Por quê?

Sou contra essa multiplicação de BRTs (corredor de trânsito rápido para ônibus), mas sou a favor do investimento no sistema ferroviário e de metrô do Rio na região do subúrbio. Se pegássemos uma faixa prioritária entre a Central (do Brasil) e Deodoro, ao longo da via férrea, e criássemos moradias, seria melhor que investir na Barra (da Tijuca). Ninguém fala do patrimônio que é a cidade. No Brasil, nem consideramos que a cidade é um patrimônio. Nos damos o luxo de jogar fora o capital coletivo simbolizado num patrimônio que é a via férrea. Jogamos fora a riqueza que a cidade do Rio produziu e a área que urbanizou e criamos outra fronteira de exclusão e outra de privilégio. É por isso que as nossas cidades estão alargadas e crescem infinitamente. Precisamos adensar a cidade e racionalizar os investimentos. É preciso que os citadinos comecem a querer morar no centro. Se quiserem viver em casas, eles têm todo o direito de morar na zona oeste, mas isso tem todo um custo social.

Que custo é esse?

Meus alunos ficam enlouquecidos quando pergunto onde moram. “Moro em Jacarepaguá.” “Mora em casa? Quanto paga de IPTU?” Pagam pouquinho. “Você tinha que pagar muito mais”, digo. Há mais de cem anos inventamos um modo de viver em arranha céus, porque o custo da terra urbanizada é muito alto. Ser cidadão é, inclusive, saber disso. Moramos em apartamentos que ficam em uma parcela específica de solo por onde vai passar água, esgoto, telefonia, limpeza pública, arborização, onde haverá banco e escola. Naquela parcela, podem morar 20 famílias. Se apenas uma família morar ali, o custo vai ser 20 vezes mais caro.

Essa visão está se disseminando?

Acho que não estamos (conseguindo disseminá-la). Temos que formar as novas gerações, mas não temos tempo de sair, no meu caso, da universidade. Somos poucos, então não está dando tempo de formar, informar, ouvir e aprender. Estamos numa cidade universitária que é afastada da cidade. Todas as nossas grandes universidades no Rio estão afastadas do centro. É muito fácil atravessar os portões da universidade, mas é muito difícil sair e conversar, ouvir e tentar transmitir o que nos foi possível pensar. Está faltando diálogo, estão faltando canais de diálogo, pontes no interior da própria sociedade. Os movimentos de ruas dos últimos meses são uma coisa maravilhosa. Mas quando atingem essas proporções, isso significa que faltaram canais de diálogo.