Na quarta-feira, 26/11, os debates seguiram duas abordagens principais: as mudanças climáticas para os povos originários e os impactos dos eventos climáticos extremos na preservação do patrimônio cultural. Sobre o primeiro tema, a mesa da manhã refletiu sobre os efeitos das mudanças climáticas na vida e na cultura dos povos originários e de comunidades tradicionais, destacando que essas populações estão entre as mais vulneráveis da crise climática.
A mesa reuniu o antropólogo Luiz Felipe Rocha Benites, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); a ativista caiçara Carol Barbosa, presidenta do Conselho Diretor do Museu Caiçara, em Ubatuba; o representante Guarani da Aldeia Sapuka, de Angra dos Reis; e Julio Karai Xiju, coordenador do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT). A mediação foi conduzida pelo historiador Hilário Pereira, do Escritório Técnico do Iphan na Costa Verde e professor do Mestrado Profissional do Iphan.
A fala de Carol Barbosa destacou os múltiplos impactos ambientais e territoriais sofridos pelas comunidades caiçaras e a desigualdade no tratamento dado pelo poder público a grandes empreendimentos e populações tradicionais. Ela destacou que os impactos ambientais não são devidamente considerados pelas autoridades, citando episódios como barcos de pesca atingidos por embarcações de petroleiras e outros problemas que afetam a segurança e o modo de vida local.
Carol também citou questões fundiárias na região da Bocaina, destacando que leilões de terras têm permitido que grupos empresariais adquiram áreas e tentem expulsar comunidades tradicionais. Carol enfatizou que os conflitos territoriais têm se intensificado e reforçou que “não existe comunidade tradicional sem território”.
Julio Karai Xiju destacou destacou a relação profunda dos povos originários com os quatro elementos da natureza e os impactos das mudanças climáticas sobre seus modos de vida. Ele explicou que a vida depende da água, do fogo, da terra e do ar, elementos que também podem levar à destruição quando desequilibrados.O palestrante destacou que antigamente havia fartura nos rios e nas matas, mas alertou que hoje a Mãe Terra está pedindo socorro. Ele também defendeu que governos e instituições reconheçam os direitos e as práticas tradicionais dos povos originários, especialmente no debate sobre a demarcação de terras.
O antropólogo Luiz Felipe Rocha Benites destacou os saberes tradicionais como forma de resistência e como elemento fundamental na construção de políticas ambientais e patrimoniais mais justas e sustentáveis. Ele contou que desenvolve desde 2023 pesquisas com comunidades ribeirinhas do Vale do São Francisco, no norte de Minas Gerais, onde as mudanças climáticas já são percebidas de maneira concreta. O antigo ciclo das águas, antes marcado por temporadas regulares de chuva e seca, vem se alterando: a seca tem se prolongado além do habitual, enquanto as chuvas se tornaram menos intensas, afetando diretamente a vida e as práticas produtivas dos ribeirinhos, explicou.
Benites também chamou atenção para a ideia de reciprocidade nas relações entre humanos e aquilo que convencionamos chamar de natureza. Destacou que populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas e outros grupos tradicionais não se percebem dissociados do ambiente e que essa separação é uma construção externa: “fomos nós que chamamos natureza de algo que está fora de nós”. Quando algo é colocado como externo, observou, torna-se passível de objetificação, exploração e exaustão. Após a sessão de perguntas, houve uma apresentação de jongo com o Grupo Cultural Filhos da Marambaia, de Mangaratiba.
Na parte da tarde, o tema em destaque foi o impacto dos eventos climáticos extremos na preservação do patrimônio cultural. A mesa discutiu os efeitos de enchentes, deslizamentos, elevação do nível do mar, secas e incêndios sobre diferentes tipos de patrimônio, como o edificado, o arqueológico, o paisagístico e o imaterial, além dos desafios enfrentados pelos órgãos de proteção ambiental e pelas comunidades. O debate contou com a participação da ambientalista e arte-educadora Gilmara Ribeiro, da líder comunitária de Monsuaba, em Angra dos Reis, Natália Coutinho, da produtora e curadora da residência artística CasaDuna, Julia Naidin, e do codiretor da Cátedra UNESCO Patrimônio e Paisagem Cultural, Rafael Winter Ribeiro, com mediação de Anna Letícia Espíndola, diretora do Departamento de Geoprocessamento e Bens Naturais do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac).
A mediadora Anna Letícia Espíndola destacou como eventos climáticos extremos têm afetado o patrimônio cultural, citando casos de Petrópolis durante enchentes, quando equipes tentam salvar bens históricos. Segundo ela, é fundamental compreender como esses efeitos climáticos se manifestam e discutir estratégias para minimizar danos futuros.
A ambientalista Gilmara Ribeiro destacou a relação profunda entre pessoas, cultura e patrimônio, articulando essas dimensões às questões ambientais e ao modo como vivemos e nos relacionamos com o mundo. Gilmara questionou modelos de consumo e julgamentos de valor, defendendo que mudanças de comportamento passam necessariamente por educação e cultura. Para ela, o ser humano ainda não compreendeu que é apenas coadjuvante na natureza, que não distingue entre ricos e pobres: “a natureza não vai esperar, ela vai simplesmente acontecer”, destacou.
A fala da líder comunitária Natalia Coutinho evidenciou como transformações urbanísticas, pressões econômicas e desastres ambientais têm afetado profundamente o território e a vida da comunidade caiçara de Monsuaba, em Angra dos Reis. Natalia relatou que a região foi urbanizada em nome do progresso e hoje sofre com a pesca industrial e a especulação imobiliária. Também contou que, antes, as crianças faziam trilha para ir à escola e que várias atividades tradicionais foram apagadas, afetando a cultura caiçara.
Ela relatou a perda de espécies e recursos que sustentavam a comunidade, como o caranguejo goiá, hoje quase desaparecido devido à expansão de condomínios.Também criticou o descaso do poder público e destacou a importância da participação comunitária junto às autoridades para soluções para eventos climáticos, como a definição de rotas de fuga em caso de inundações.
Julia Naidin destacou sua experiência na praia de Atafona, no Norte Fluminense, e o trabalho que desenvolveu a partir da convivência direta com a comunidade, observando a subida acelerada do nível do mar no local e buscando formas de registrar e dialogar com essa realidade por meio da arte e da memória.
Julia contou que chegou ao campo do patrimônio quase por acaso, ao conhecer a situação da praia de Atafona. Depois da primeira visita, mudou-se para o local e iniciou, em 2017, um trabalho que fugia ao modelo tradicional de pesquisa, criando a residência artística CasaDuna para lidar com a destruição em curso. Explicou que o rio Paraíba do Sul foi 70% desviado, o que enfraqueceu seu fluxo e permitiu o avanço do mar, resultando na perda de casas e na transformação de ruínas em espaços de convivência. Identificou o contraste entre concepções tradicionais de patrimônio e a realidade de Atafona, onde a erosão se tornou um fenômeno que mobiliza a comunidade. Relatou ainda ações como escuta de pescadores, formação de grupo de teatro, projeção de filmes nas ruínas e um museu ambulante, mostrando como esses espaços continuam a produzir memória e vida comunitária.
O professor da UFRJ Rafael Winter Ribeiro apresentou um panorama sobre como a Convenção do Patrimônio Mundial vem incorporando a questão das mudanças climáticas e de que maneira esse instrumento internacional pode ser apropriado em benefício das políticas patrimoniais brasileiras. Ele lembrou que a Convenção, criada em 1972, separa natureza e cultura, é amplamente aceita internacionalmente e recebe críticas por sua origem e linguagem europeias. Destacou que, em vez de aceitar essa estrutura como dada, é preciso entendê-la como um campo de disputas e buscar formas de participação.

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