A semente de Burle Marx na restinga dos modernos

A semente de Burle Marx na restinga dos modernos

Recentemente topei com Burle Marx no Largo de Santo Antônio, em Cabo Frio. Obviamente não nos topamos pessoalmente, mas sim, em meio a minhas pesquisas no fabuloso acervo do Arquivo Noronha Santos, do Iphan, preparando terreno para um doutorado que vem pedindo passagem de maneira cada vez mais convincente.

Enquanto examinava a série “Obras”, na busca por desvendar caminhos vividos pelos remotos monumentos do século XVII daqui e pelo tecido da cidade antiga, foi quando topei com Roberto. Melhor dizendo, me deparei ali com um projeto seu, uma proposta de arborização em três pranchas que abrangia o Largo de Santo Antônio, as bordas do antigo Convento e da Ordem Terceira, as franjas e o acesso ao cume do Morro da Guia. A proposta era uma colaboração de Burle Marx com a turma do patrimônio, propondo solução a ser executada pela municipalidade como medida executiva, dando base a um acordo e encerramento de uma peleja judicial que vinha freando obras monumentais de aterro e urbanização, incrivelmente sem aprovação. Confusão à parte, é interessante notar que é através de um projeto de maciços vegetados que o paisagista soluciona as interferências, usando o natural como elemento intermediador, como fez Lucio Costa no projeto do Plano Piloto de Brasília. 

Clube Costa Azul, em Cabo Frio, de autoria de Renato e Ricardo Menescal (1964). Fonte: Acervo Ivo Barreto, 2021.

Embora a surpresa de “um Burle Marx entre nós”, não se pode dizer que a presença dos modernos aqui seja um acaso, o tempo já foi capaz de adensa-los no olhar mais atento. Podemos notá-los desde os mais evidentes na paisagem, como nos elegantes planos tangentes ao estilo Mies, presentes no vigoroso Clube Costa Azul (1964), dos irmãos Ricardo e Renato Menescal; passando por ilustres desconhecidos, como a tectônica casa da família Simões, na Ogiva, assinada pelo escritório MM Roberto (1979), chegando até conjuntos modernistas expressivos ainda inexplorados, como são os casos do Colégio Miguel Couto de Cabo Frio, os pórticos de acesso ao conjunto industrial da Refinaria de Perynas ou a impressionante quadra modernista nos arredores da Pontinha, em Araruama, dos quais apenas o interessante hotel La Gondola é o mais conhecido, todos eles, via de regra, de motivos, contextos e pranchetas ainda por se descobrir.

Diagrama síntese do Plano de Urbanização Cabo Frio – Búzios, assinado pelo escritório MMM Roberto (1955). Fonte: ilustração do autor em “Cabo Frio Revisitado: a memória regional pelas trilhas do contemporâneo” (BARRETO JUNIOR, 2020, p. 312. Ed. Sophia).

Em meio à transformação que sobretudo a partir dos anos 50 a região de Cabo Frio viria sofrer, quando o turismo de veraneio se fortalece na pauta política e econômica, os modernos – historicamente vinculados à ruptura da maneira de se projetar e construir no mundo – já vinham atuando por aqui, propondo caminhos não apenas na arquitetura, mas buscando alternativas para a transformação que se avizinhava, como é o caso do Plano Cabo Frio-Búzios, dos mesmo MM Roberto, que propõe, em 1955, uma imensa cidade-jardim que se estendia desde a Boca da Barra do Canal do Itajuru à foz do Rio São João, cojurando propostas em linha direta com os preceitos de Ebenezer Howard. Ao estruturar um plano composto por pequenos “núcleos felizes” nas orlas e grandes áreas agricultáveis (ou de matas preservadas) no interior, experimentam aqui, portanto, o tom de projeto que reapareceria na célebre cidade-jardim proposta pelo escritório dos Roberto ao Concurso de Brasília, um ano depois. Até onde e em que porções teria sido efetivamente implementado este plano, é difícil dizer com o que se sabe, embora se possa notar indícios de que estas empreitadas evoluíam até certo ponto, como atestam as ParkWays de Coimbra Bueno e Agache, propostas cerca de uma década antes (1942) e ainda com registros reconhecíveis na Cabo Frio contemporânea.

Quando uma semente como esta de Burle Marx brota de uma fresta inesperada e se enrosca em tudo aquilo que já está por aí, esperando conexões que as saturem, me pego mais uma vez refletindo sobre um fato: assim como passa ao ciclo do sal e suas heranças, ainda negligenciadas na historiografia brasileira e sem grandes reflexos em nossos acervos, ainda nos faltam boas costuras aos retalhos que nos permitam saber, com maior calor, como se faziam praianos os nossos modernos.

Ivo Matos Barreto Júnior, Arquiteto.
Mestre em Patrimônio Cultural e Projeto.
Professor da Universidade Estácio de Sá – Cabo Frio.